A Invenção da Asneira

Época gloriosa foi aquela logo a seguir à Independência em que a língua portuguesa sofreu uma apropriação nacional e passou a andar ao nosso lado e a falar do nosso jeito..

Retirados os guardiães do português que tanto podiam ser os eruditos professores como o Dr. Mourão Correia, ilustre lusitanista talhado em má cepa de inspector escolar, até ao Xico da Esquina que se sentia tão dono da língua que explicava ao servente que o vinho que era vinho  binho se dizia e como binho  se bubia ...

Retirados os achados donos da língua e tendo esta ficado, embora livre, desvalida de tão douta e puritana protecção, veio ela para a rua conviver com uma revolução que se pré-  
anunciava ( e afinal morreu defuntada pelo abandono) inventar palavras com sabor da farinha que houvesse e do peixe frito que aparecia.

Primeiro veio com a guerra a militarização da língua: se o inimigo atacava  gente "aplacava" no chão, se o inimigo "desconseguia" logo a gente lhe "colocávamos" que é como quem diz, imobilizávamo-lo como se ele fosse um "sabotador" desse que andam a roubar carteiras na rua. Porque sabotador, estareis lembrados, pulou o muro da guerra, para o da economia e passou a querer dizer também  ladrão.

Depois de ter assentado praça, a Língua Portuguesa achou que embora houvesse trinta e tais nomes para dizer menino, desde criança, curumi, criatura, gaiato garoto,  guri, fedelho, infante, miúdo, moço, nhonhô, párvulo, pequeno, petiz e rapazinho, era bom termos uma palavra nossa e assim botámos no dicionário de todos os dias a palavra pioneiro, o tão conhecido piô.

Outros vocábulos que o dicionário não tinha e a gente precisava como "panicar". É certo que no português anteriormente falado a gente entrava em pânico, mas agora com guerra e morteiro havia que arranjar um verbo de maior rapidez que grande era o medo e a necessidade. Deixou de se entrar educada e portuguesmente em pânico, para se panicar logo ali.

E todas estes descobrimentos que fazíamos não às Índias dos saberes, nem e aos Brasís da crioulidade, mas às raízes populares da nossa alma, e todos estes astrolábios que ajustávamos à realidade das nossas estrelas eram legítimos.

Legítimos, porque tinham uma razão. Legítimos, porque apontavam para uma necessidade. Legítimos porque ao invés de empobrecer e conspurcar a língua a enriqueciam e a tornavam mais tropicalmente viva e adaptada. Legítimos também, porque como dono e utente desta língua a transformávamos sem outra intenção que não fosse torná-la mais nossa, mais comunicável, mais à medida das nossas precisões.

Ora pois que servem estas palavras para duas coisas: a primeira para demonstrar que não sou um puritano da língua, a outra para chamar a atenção a todos aqueles que nos jornais, nas rádios, na Televisão, a atropelam, a conspurcam, não se sabem servir dela.

A língua não se quer virgem, quer-se amante e namorada. Amem-na, estimem-na, mas não a prostituam.

Já não falamos dos às que saem quase sempre trocados e se transformam em as e que por muito que se fechem os olhos, os ouvidos e o entendimento, fazem uma diferença como do "dia p'rá noite", mas falemos do mas que ainda se pode corrigir e não dizer mais, porque uma coisa é eu ser casado, mas ter mais que uma mulher, outra coisa é você ser solteiro mas, por muito que se esforce não conseguir mulher nenhuma.

Uma mesmo situação é a de quem protesta porque acha que tem razão, outra quem a pretexto da razão que tem procura magoar os outros. Temos ainda o director ( e não o direitor) que não pode ser agraciado com um jantar, porque não é  possível  ser condecorado com tanta comida ao peito.

E finalizo com o culminar que é empregue como finalizar, quando significa principalmente, que se chegou ao ponto mais alto de uma celebração, quando a etiqueta obriga que se tenha na mão, mais que um copo de vinho branco, uma taça de champagne.
Darío de Melo