Caixeiros Viajantes


Quando nos aproximamos do País dos Pés-P’rá-Frente, não sabemos se deveremos dar graças por tanto tempo vivido, se apresentar reclamação ( seja lá a quem for) por tão pouco tempo que nos resta ainda por viver.

Começa-se a olhar, e não são só os jovens que nos são distantes, mas outros já a começar a caminhar pela madureza de idade.

Perguntei outro dia a uma menina e moça, mais moça que menina, se se lembrava dos caixeiros viajantes. Que não, como será natural, em quem tem pouco mais que trinta anos e nunca chegou além do Cacuaco, para lá de ter viajado pela África do Sul, Europa e quejandos países do mundo.

Pois, um caixeiro viajante era um vendedor de loja a loja que representava os grandes armazéns do País (na altura Província e depois Estado), mostrava a fazenda, discutia os preços, oferecia as vantagens, anotava as encomendas  e, daí a oito dias, chegava a mercadoria. Uns dando a volta pela periferia da cidade, outros rasgando os interiores de Angola.

De carro, levando o mostruário do que tinha para vender, o caixeiro viajante era, normalmente, um homem bem posto, sempre impecável, de fato e gravata ( pelo menos no planalto, era assim) bem falante e capaz de estar uma noite inteira a contar anedotas. Este era um do seus melhores predicados, a que se juntava o poder de persuasão. Bom produto, boas condições, muita lábia e bom humor - eis pois, o retrato do caixeiro viajante.

Era sempre com uma anedota que ele entrava na loja do cliente e com outra que saía. Nunca ouvi que repetissem qualquer anedota. Contavam-nas, umas a seguir às outras, sempre novas, sempre diferentes. Possivelmente reciclavam-nas no final de cada viagem, inventando novos personagens, colocando numa estória o final de outra e assim por diante.

Claro que os contadores de anedotas não eram todos iguais: uns eram bons, outros só assim-assim. Uns decoravam e repetiam, outros inventavam, adaptavam e pudesse ter acontecido o que quer que fosse no Estado que era Angola, ou na metrópole quer era Portugal, logo ali eles contavam uma estória a propósito.

Alojavam-se e comiam no hotel. Muito raramente em casa do cliente para evitar inimizades e sussurros de preferências com os restantes clientes. Eram éticos: nunca assediavam os fregueses de outro colegas.


Esta é a figura do caixeiro viajante que aparece só a partir da década de sessenta, quando as estradas deixaram de ser as picadas que até aí tinham sido. Naturalmente que nem sempre foi assim. Antes, o combóio era o grande transportador - e primeiro o aviado - aquele comerciante-empregado que explorava por sua conta uma loja de outro, com a obrigação de comprar tudo ao patrão, e depois o caixeiro viajante cumpriam aqui uma dupla função: a comercial, vendendo, e a social levando e trazendo informações e notícias que, sem telefone, interessavam à curiosidade isolada de todos. Comerciantes havia que se conheciam sem nunca se terem visto. Viviam do retrato que os caixeiros viajante deles faziam - uns mais velhos, que muito raramente saiam do “seu mato”  outros que por ganância, não perdiam um dia de venda e não desciam até à vila cabeça do seu município, quanto mais à cidade capital do seu Distrito.

E lá iam eles ao longo da linha, Lobito/Teixeira de Sousa. Sair de tarde, passar a noite naquele tem-que-não-tem-hora do combóio, com um farnel para entreter a fome e chegar ao Huambo ao outro dia, a Silva Porto ao cair da noite, ao Cuemba pela roda das onze da noite, ao Munhango muito mais para tarde e a Vila Luso que hoje se chama Luena, já não sei muito bem quando.

Os caixeiros viajantes, com o tempo, desapareceram de Angola. Talvez regressem um dia, quando a paz amanheça pelos caminhos do interior. Que enquanto a guerra impedir que as estradas se abram, os nossos caixeiros viajantes serão outros...

... aqueles que “estamos a vir com eles”, no porta a porta da desgraça, oferecendo mostruários de fome, de morte e de miséria.

Darío de Melo