A Água da
Minha Rua
Vai fazer precisamente agora nove anos que a água da
minha rua se zangou comigo. Lá porquê não sei, mas calculo que por uma questão
de oportunismo. É com mágoa que vos afirmo, com uma profunda e nunca desmentida
tristeza que vos digo, que a água da minha rua fugiu da minha casa. Como é uma água especial, com pernas e
tudo, lá se desviou ( ou foi desviada) para torneiras de gente mais rica, mais
importante, mais quê.
Se a água se desviou ela sozinha, porque entendeu
que viveria melhor noutro lado, está no seu pleno direito. Cada qual escolhe o
seu próprio caminho. Lamento somente não lhe ter dado a vida que ela queria, a
vida com que ela sonhava, desde
que saiu lá dos tanques da EPAL. Possivelmente, um bom fogão para a ferver, ou
uma lexívia especial para a desinfectar a quatro gotas por litro, ou um filtro
desses modernos de ozono que passa só e já sai purificada
Muito embora tratando-a com o carinho que merece, a
água tem exigência que nem todos podem assegurar. Alguns, infelizmente,
consomem-na mesmo bruta que é assim, como sabeis, uma água em estado de
analfabetismo total – sem leitura de qualquer contador.
Se por acaso, a água da minha rua não se desviou,
mas foi desviada contra a sua vontade, estamos a braços com um caso de rapto que só a polícia poderá
deslindar.
Como sabeis o rapto é um crime de invulgar
crueldade. Senão vejamos: estivesse eu no deserto e ao fim deste nove anos sem
água de lavar, nem de beber, o que é que me teria acontecido?
Morasse eu na Cuca ou na Nocal e tivessem desviado a
água, o que é que nos aconteceria a todos? Era o agravamento da sede e da
indústria nacional. Claro que há aí quem
use unicamente da importada, mas mesmo assim têm sempre de lado uma
garrafita da nossa para quando entra visita:
- Vai uma birita da nossa, da nacional? (oferecem
eles). Aqui em casa não se bebe de outra. Está boa. Posso dizer que está tão
boa como qualquer outra.
A gente sai e lá está ele a mandar a prima ( que
aliás veio para casa dele para estudar e acabou por tirar a especialidade de
servir à mesa do senhor seu primo e de ser criada dos filhos do dito) dizia eu
que manda a miúda pôr a referida nacional na geleira porque pode aparecer a próxima visita.
Pois assim é que me desviei para a cerveja quando
estava a falar de água, assim como se desviou ( ou foi desviada) a minha água
quando, se calhar, eu estava distraído com uma cerveja.
Ainda há uns tempos me apareceu um tipo a querer-me obrigar comparar um
contador.
Dizia-me ele:
- Se o Senhor não tem contador, tenho de lhe multar.
Dizia-lhe eu:
- E quem é que lhe multa você
que não me dá água?
Foi embora sem resposta, mas deixou-me uma montanha
de problemas e dúvidas:
Como se chamará um contador que não conta?
Contador desempregado, ou contador reformado?
Contador doente, ou contador em greve de sede?
E outro caso:
Como é que um contador “virgem” ( com tudo a zero no
aparelho de quilometrar a água) aprende a contar se nunca contou, nem aprendeu
a contar? Teremos de abrir um curso básico de contagem para contadores em idade
escolar?
E outro ponto:
Qual é a idade escolar de um contador? E a idade de
reforma? se há contadores em Luanda com mais de cinquenta anos de serviço, que
já deram trinta voltas aos carretos e ainda continuam a contar?
E contar o quê? se a água passa e não quer saber de
contas.
E contar para quê, se a gente paga sempre o mesmo,
de há vinte e tal anos para cá, sem ter contas nem contagens.
Para que serve contar a água, se não se conta na
conta?
Para que serve ter contador se não há água na
torneira?
Dario de Melo