Como nasce um
buraco
Cai uma lágrima de chuva e faz um furo no chão. Passa um carro, um camion - entra e
salta, bate e alarga. A vizinha então ajuda: descobre o primeiro ofício do
buraco que é o de sítio de despejo. Aí se podem despejar muitas águas: a suja,
a de sabão, a das sobras das comidas e
até, de outras sobras que é feio dizer aqui.
Cheira mal? É o cheiro da natureza que nasce cultivada com a ajuda dos porcos e
galinhas, cães e gatos que vão ali vasculhar no supermercado da sobrevivência.
Passa um ano e chove mais. O buraco alarga. Agora já
não é um buraco sozinho - tem lama. Lama de todas as cores que o buraco não é
racista: tem a branca de terra
arenosa, vermelha de barro tijolento e a escurinha que é mesma da cor gentia de
cá. Para o ano será um lago cheio de muitas companhias: moscas, mosquitos,
limos, algas onde nadam tuqueias e cacussos.
Cuidado! não
ponha sal nessa água. Se a água fica salgada você pode ter no tal
buraco, bagre, peixe espada e tubarão. É um perigo para a criançada que toma
banho e não sabe que pode morrer
de morte comida. Tubarão é bicho que mata quando é peixe, e come tudo da gente
se é pessoa.
Atenção: esse buraco que é lago aí no meio do Bairro você tem de o
tratar bem, com todo o carinho do
mundo... Há buracos como esse que
têm mais de dez, quinze e vinte anos. É preciso respeito pela idade. São
buracos que o colono deixou abandonados e a gente nacionalizou. Agora são
nossos. Velhos na idade da reforma, mas a gente lhes aguenta no serviço de
parte molas que a reforma não dá.
Ao contrário do que se diz, a lagoa do buraco não
está só a provocar doenças, também educa. A Lagoa
do Buraco da minha rua é, verdadeiramente, uma Escola dos Tempos Livres. Ali aprendem
as crianças a arte de pescar,
nadando na sua higiene de todos os dias. Ali aprendem os meninos a defender a sua propriedade, enxotando
e berridando os outros que não são de cá. Conhecem a lei: neste buraco das pescas só pesca o
próprio dono do peixe.
Entendo
que em cada escola se deveriam reunir todos os buracos do recreio para fazer
deles um buraco só. Teríamos assim um só buraco educativo em vez dos tantos
que temos.
Os
próprio adultos que já não precisam de ser educados, porque sabem que p’ra ter, é preciso xingar a mãe dos
outros, refilar as dificuldades, porque quem não chora não mama, os próprios
adultos, dizia eu, graças a esses buracos estão a ter uma saúde de ferro com a
ginástica que fazem: sapato na mão e calça arregaçada, de cada vez que entram e
casa, ou saem para o serviço. Graças aos buracos já houve até dois casamentos,
porque as donas, como não tinham calça para levantar, arregaçaram as saias. E
isto é como quem diz: quem as olhou cobiçou e quem cobiçou se quis ir mais de
perto, foi parar lá na Igreja. Que aqui neste Bairro dos Imbondeiros, não se
usam esses costumes asfálticos de ricos - ir só no registo civil. Aqui, quem
quer olhar e ver a fazenda, paga completo.
Falaram-me que anos atrás um buraco destes matou a
fome a um bairro inteiro. Foi o caso de ter aparecido ali, com a Graça de Deus,
um jacaré, já nascido na idade de adulto. Podia ter comido gente, mas como as
panelas estavam em lume de aquece que é
só água, meteram lá dentro
o jacaré que, com a pressa nem foi bem cozinhado, mas foi muito bem comido.
É preciso não esquecer também que os buracos têm uma forte vertente
ideológica. São buracos democráticos
- todos, sem qualquer discriminação, os podem encher de lixo. São, para
todos, o banho das crianças e os mictórios dos adultos. Ainda mais: servem água
gratuíta para quem quer lavar a roupa. Cheiram mal para toda a gente. Não
escolhem nariz, nem posição social. Quem passa cheira. Quem não cheira, é
porque não passou. Dividem por todos as doenças e matam a todos por igual. Só
não podem matar rico, porque rico
não mora cá e filho de rico não está aqui.
Mas isto não quer dizer que a gente tenha menos
respeito pelo buraco do nosso bairro. Porque defeitos todos nós temos e buraco
é como gente, com as sua próprias dificuldades.
Entendo que devam ser louvadas as autoridades que ao
longo de todos estes anos têm conservado, tratado e aumentado até, com
desvelado carinho, e com inusitado cuidado todos os buracos que a nossa cidade
tem.
Todos nós sabemos que os buracos fazem parte do
património da cidade. São uma potencial fonte de interesse turístico, pelo que entendemos
que se deva criar a Associação da Conservação dos Buracos, lembrando sempre que
de cada vez que se nivela um buraco perde-se uma história. E propor criar, a
Comenda do Buraco. Quem deverá ser o primeiro agraciado como Comendador do Buraco? Quem?
Dario de Melo